Texto preparado para debate entre jornalistas e magistrados na Escola Paulista de Magistratura marcado para 30 de agosto último e adiado para final de outubro próximo
Só sobramos nós dois. E nossos destinos estão amarrados um ao do outro.
A conjunção de TV + STF está na raiz das manifestações de junho.
Esperança faz muito mais falta que cultura política para levar o povo a participar. Foi isso que essa conjunção proporcionou. Ela reacendeu a esperança.
Mas nem o judiciário, nem a imprensa corresponderam à expectativa que esse primeiro impulso gerou.
A imprensa menos ainda que os senhores.
Ha uma parcela do Judiciário que reconhece suas mazelas e se propõe a fazer reformas enquanto a imprensa parece estar em paz com seus fracassos, excluídos os financeiros.
A continuação da ação saneadora do CNJ é essencial. Não é necessário chegar ao fim da limpeza, que é trabalho que nunca acaba. Mas é imperativo comprovar todos os dias o compromisso com a vontade de limpar.
Theodore Roosevelt tinha a definição perfeita dessa questão: “O problema não é haver corrupção. Corrupção é inerente à espécie humana. O problema é o corrupto poder exibir o seu sucesso, o que é subversivo”.
Para que os corruptos não possam mais exibir o seu sucesso é preciso ir mais longe que manter a ação saneadora do CNJ. É preciso reescrever o Código de Processos.
Deixar que a duração do processo continue dependendo da concordância do réu com a justiça da sentença é coisa que não faz nenhum sentido senão para enriquecer advogados e abrir brechas para a corrupção de juízes. Com essa regra a chicana é inevitável e onde a chicana é a regra a esperança de Justiça morre e a subversão dos valores não pode mais ser contida.
Esta é a primeira trava sem a qual o país seguirá descambando ladeira abaixo em direção à opressão.
Desde o julgamento do Mensalão a esperança já foi maior. Mas arrefeceu quando o país se deu conta de que não ha fim para os processos nem depois de julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Os embargos infringentes, que podem reabrir o julgamento, estão banidos desde a Constituição de 88. Ainda são aceitos apenas porque o regimento interno do STF esqueceu de retirá-los de lá. Mas apesar dessa evidência prevalece o erro formal, mesmo à custa da subversão do espírito de um preceito constitucional.
Esse tipo de tortuosidade é um veneno para a esperança. Pois se não há espaço para a racionalidade instala-se o salve-se quem puder.
É o mesmo caso do numero crescente de decisões judiciais determinando a censura dos jornais. Essas decisões interessadas da 1a instância não são o verdadeiro problema. O que é preocupante é a conivência das instâncias superiores com elas em detrimento da reafirmação de um princípio tão essencial às Constituições democráticas quanto o da liberdade de informação e expressão do pensamento.
Mas não quero fugir à parcela de culpa da imprensa.
O papel do judiciário é manter em pé a esperança de justiça, sem a qual a cidadania não tem ânimo para se levantar. O da imprensa é pegar essa esperança e dar-lhe consequência; indicar os caminhos para as reformas.
Mas a imprensa brasileira de hoje renega o seu papel histórico de parteira de reformas. Anulou-se como agente proativo do sistema e deixa-se docilmente manipular pelas fontes oficiais. Muito mais que a internet é isso que a está matando.
Para balizar o caminho das reformas é preciso ultrapassar as fronteiras nacionais do pensamento. As instituições são a primeira base da infraestrutura de uma Nação. Mas são uma tecnologia, como outra qualquer. Onde quer que tenham sido inventadas, ha as que funcionam e ha as que não funcionam.
Recusar as que comprovadamente funcionam segundo a sua origem faz tanto sentido e custa tanto prejuízo quanto proibir-se de usar a informática só porque não foi inventada aqui.
Nós temos de aceitar humildemente o fato de que não dá para aprender democracia em português. Simplesmente porque nenhum país que fala a nossa língua jamais experimentou uma. O arsenal doméstico de remendos institucionais está esgotado. É preciso servir ao leitor brasileiro um pouco de história da democracia onde ela de fato se instalou. Mostrar as soluções que, há 100 anos e mais, foram dadas aos mesmos problemas que enfrentamos hoje. Aprender com quem já o fez como armar a mão do representado para submeter o representante.
É preciso “abrir os nossos portos” à inovação institucional. Resgatar essa multidão que saiu às ruas em junho para gritar que sabe o que não quer mas não tem ideia do que quer, da ignorância em que, não por acaso, ela tem sido mantida a respeito dos recursos disponíveis nesse campo.
Mas é o contrário disso que acontece. Os brasileiros estão minuciosamente informados sobre cada desvio do padrão nas democracias dignas desse nome que lhes são sistematicamente servidos como a norma. Mas nunca viram na televisão ou num jornal uma cédula de uma eleição americana com os 60 e mais quesitos, em média, sobre os quais o povo é chamado a decidir diretamente a cada dois anos. Nunca leram ou assistiram na TV a uma única reportagem sobre qualquer dos 150 casos de recall de servidores públicos ocorridos naquele país somente no ano passado.
O jornalismo que se pratica nesse campo hoje no Brasil alega zelo pela isenção mas é quase sempre uma falsificação. Limita-se à amplificação do que dizem as fontes oficiais até quando denuncia o poder detonando, como se fossem suas, as bombas que lhe são entregues por bandidos visando outros bandidos em disputa pelo mesmo butim.
O jornalismo brasileiro de hoje proíbe-se de pensar com a própria cabeça; de procurar respostas fora do campo dos interessados em que nada mude. Mas a realidade é que ao proibir-se de fazer escolhas fica a reboque das escolhas alheias.
Esse suposto “preceito ético” que lhe foi incutido como universalmente aceito em escolas aparelhadas, aniquila a função mais nobre do jornalismo e renega a essência da história da imprensa democrática que, onde quer que elas tenham ocorrido, foi o agente promotor das reformas que mudaram para sempre a qualidade da democracia e abriram as portas do mundo desenvolvido para um novo patamar de respeito à dignidade humana e de progresso social e material.
O resultado prático é que, no meio desse tiroteio, o eleitor e o cidadão brasileiros continuam mais perdidos que cego em quarto escuro procurando o gato preto que não está lá.
Faltam lideranças no Judiciário. Faltam, mais ainda, lideranças na imprensa.
O horizonte está cheio de nuvens carregadas mas só os inimigos declarados da democracia sabem o que querem e estão preparados para o dilúvio que vem vindo.
O momento é de decisão.
Assim, termino como comecei: só sobramos nós dois e os nossos destinos estão unidos. Como os dois entre os quatro pilares do sistema democrático mais distantes da disputa pelo poder, nossas missões são complementares.
Tem sido assim desde sempre.
A democracia moderna nasceu na Inglaterra em 1605 quando, no alvorecer do absolutismo monárquico, o juiz supremo, Edward Coke, cara-a-cara com o rei, declarou James I “under God and under the law”. E consolidou-se na virada do século 19 para o 20, nos Estados Unidos, quando o povo, liderado pela imprensa, impôs a um sistema arruinado pela corrupção as reformas saneadoras da “Progressive Era”.
Foram elas, e não a tão celebrada Constituição de 1787, que efetivamente armaram o povo para submeter os representantes à sua vontade e, com esse poder nas mãos, reconstruir de alto abaixo aquilo que até então era tido como democracia.
Continua sendo como sempre foi: o marco inicial, que define o limite até onde cada poder pode ir, tem de ser plantado pelo Poder Judiciário. Balizar o rumo, daí por diante, é responsabilidade da imprensa.
O Brasil das próximas gerações será construído – torto ou aprumado – segundo aquilo que nós formos capazes de plantar agora.
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