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Channel: Direitos Humanos – VESPEIRO
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A falta que ele nos faz

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Por onde a coisa pega não é difícil entender: a humanidade tem consciência do seu próprio fracasso; sabe que caminha no rumo de um desastre. Apesar do trabalho ingente da legião dos que, lá do alto dos picos gêmeos do poder político e do poder do dinheiro, se dedicam a apagar essas fronteiras, sabe muito claramente o que é o bem e o que é o mal e em que lado dessa linha anda pisando com maior frequência.

Nelson Mandela é um dos raríssimos casos da vertente boa da espécie, eternamente em potência, realizada. Ele nos pega pela inversão da expectativa. É o homem que se recusou a “ser” apesar de quase todos nós “sermos”. O revolucionário que se desarmou; que superou sua própria história; que não apenas perdoou os 27 anos que lhe roubaram mas o fez com a alma que ele deixava a todos entrever com aquele sorriso límpido, insofismável, indiscutível.

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A unanimidade em torno dele traduz a sede da humanidade pelo homem moral num mundo em que poder, dinheiro e moral repelem-se mutuamente já não direi mais naquele nível da estratosfera em que eles sempre se repeliram mas, nos dias que correm, quase desde o chão; a partir da mera disputa pela sobrevivência.

É nesta dimensão, da nossa culpa coletiva de no mínimo coniventes, que ele nos congraça a todos: une israelenses e palestinos, democratas e republicanos, petistas e não petistas, cultos e ignorantes no mesmo preito de admiração contrita.

A segunda camada dessa admiração, porém, já começa a se aproximar do chão duro da realidade.  É admiração ainda, mas duvida de si mesma neste mundo capaz de se enxergar de cabo a rabo e chocado com o que vê.

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Mandela terá sido, também, o homem que provou que nada é impossível? Que nenhum grau de estupidez é invencível? Que nenhum limite de brutalidade e de violência é irreversível?

Ou a África do Sul, depois dele, dirá que ele só foi capaz de postergar o seu destino?

Tudo é sempre o cruzamento de inúmeras improbabilidades. Nelson Rolihlahla Mandela foi humilhado e foi ofendido mas não nasceu humilhado e ofendido. Aristocrata – nem pelo sentido dos privilégios, que cedo lhe foram tirados, nem pelo da hereditariedade, que não lhe trouxe nada de concreto, mas pelo significado melhor, da soma de distinção com elevação de espírito, liderança e merecimento (e nenhum foi mais testado que o seu) – Mandela olhava para o ódio como um fenômeno exterior a ele e por isso soube compreendê-lo e operá-lo nos outros. O que lhe foi imposto não era seu. Não corrompeu sua essência. Não o tornou culpado. Mandela não conheceu o ressentimento. O rancor nunca foi um obstáculo a ser superado.

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Ele foi um híbrido do melhor de duas culturas. E esta é a base da sua universalidade. Teve o melhor da educação europeia. Guardou o melhor da essência da cultura africana.

O conceito de Ubuntu, em que ele apoiava o seu sonho de construção de uma nova África, é uma síntese ecológica. Uma parábola sobre a interdependência entre as pessoas (e as demais espécies vivas) com a qual o Ocidente vem tentando se reconciliar nas últimas décadas mas que os povos africanos, assim como os brasileiros que ainda têm memória da vida nos ambientes onde o Estado nunca tinha chegado e outras culturas pré-urbanas viveram de fato: ajudar-se uns aos outros para poderem contar com ajuda; resgatar para poder contar com resgate.

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Uma síntese ecológica que se desdobra, filosófica e moralmente, em conceitos vizinhos aos de tolerância e democracia.  “Eu sou o que sou porque você é o que é. Eu só posso ser o que sou se você puder ser o que é. Eu não sou; nós é que somos. Eu não posso ser a menos que nós todos sejamos”.

Foi por esse caminho que transitou, naqueles 27 anos, o Nelson Mandela que entrou na prisão namorando a luta armada e saiu dela produzindo o milagre de evitar o inevitável: o banho de sangue que o mundo inteiro esperava da África do Sul pós apartheid.

Mandela tinha também o dom da política. E quando digo “dom” quero mesmo dizer aquela coisa enviada por deus, que se nasce com. Foi também o mestre nas artes de dominar as emoções e controlar o tempo.

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Não se deixava empurrar pela indignação. Nem embalar-se pelos seus desejos. Examinava a alternativa inteira – e a alternativa à conciliação era e continua sendo, na África do Sul e onde mais, o banho de sangue; abrir as portas do inferno; deixar-se tomar pela síndrome do Oriente Médio; o nunca acabar – e decidia com a cabeça.

Recusar o ódio não foi, portanto, função de um transe místico. Foi fruto de uma disciplina ajudada pelas circunstâncias.

Mas se Mandela não tinha o ódio e o ressentimento como um elemento constitutivo do seu ser, seu partido tem; se Mandela nunca foi contaminado pela anti-moral leninista, seu partido sim; se Mandela não era suscetível à corrupção, seus sucessores foram e são. E corrupção não diz respeito só ao que ficou para trás; compromete principalmente o que ainda está por vir. Corrupção contrata mais corrupção. Torna a permanência no poder (e a garantia de impunidade) um imperativo de sobrevivência. Tem mais força que as ideologias mortas. Já tinha quando elas ainda estavam vivas…

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Mas ha mais.

Subdesenvolvimento não se improvisa”, dizia o eterno Nelson Rodrigues, “é obra de séculos”.

A desgraça africana é a desgraça brasileira elevada à enésima potência. Duas ou três gerações de sul-africanos atravessaram os anos 80 e 90 sem educação alguma, envolvidos numa luta brutal contra a minoria branca que os oprimia. Hoje essa geração governa a África do Sul.

A construção começa, portanto, do zero e adicionalmente prejudicada pela síndrome que afeta todos os ex-partidos clandestinos para quem qualquer oposição é uma tentativa de golpe e todo adversário é um inimigo a ser destruído.

São muitos os paralelos para não serem levados em conta…

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Dona Dilma e o PT querem, como até Bashar Al Assad quer, um pedaço da herança de Nelson Mandela. Mas nada pode ser mais incompatível do que estes dois pois se Mandela foi capaz de esfriar ódios frescos com o perdão o PT, com a sua “Comissão da Verdade”, esforça-se para esquentar ódios adormecidos soprando a  brasa da revanche; se Mandela foi capaz de deter a guerra num país onde o ódio racial foi a lei, o PT transformou em lei a diferença entre as raças num país célebre por não as considerar assim, e atrelou à condição racial privilégios que só podem conduzir ao ódio; se Mandela é sinônimo de altruísmo e força moral, esses conceitos não passam de manifestações de arrogância e “elitismo burguês” para o partido que apoia toda a sua ação no Ubuntu pelo avesso em que ele se empenha de corpo e alma para tornar verdadeira a qualquer custo a máxima debochada de seu líder máximo: “Eu sou, mas quem não é”?

Que o legado de Mandela os ilumine, afinal!

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Arquivo em:Artigos de FLM, Ética, Direitos Humanos

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