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Channel: Direitos Humanos – VESPEIRO
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A última chance

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celso6

O Supremo Tribunal Federal chega dividido à reta final do julgamento do “Mensalão”.

A questão que se discute, agora na linguagem arrevesada e pontuada de tecnicalidades que o tribunal tinha evitado na fase da reconstituição dos fatos e da atribuição das culpas e penas que o Brasil inteiro entendeu, não diz respeito apenas ao destino dos réus do “Mensalão”. É a reedição tardia de uma disputa multisecular entre alternativas antagônicas e excludentes entre si, uma das quais mantém desimpedido o caminho que conduz à democracia plena e a outra que torna impossível continuar a percorrê-lo.

A democracia moderna nasceu na Inglaterra em 1605 quando, para atalhar os poderes, agora absolutos, que no Continente os reis passavam a se atribuir pela força do terror, o juiz supremo, Edward Coke, cara-a-cara com James I, declarou-o “under God and under the law”.

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O “under the law” vai sem dizer. É algo que está mais próximo de nós e, embora 408 anos depois ainda não tenhamos conseguido instituir a igualdade perante a lei com a força ampla, geral e irrestrita que ela deve ter numa democracia, entendemos bem o valor dessa conquista até pela falta que ela nos faz. Mas o “under God” também tinha a sua importância naquele momento porque cassava do rei o poder de fazer a sua versão prevalecer sobre todas as coisas e instituía os fatos, que a ninguém é dado alterar, como a única referência da verdade.

Se esta era a lei que deveria prevalecer para o embate das idéias – e foi ela que fez nascer a ciência moderna – era ela que deveria  prevalecer também para os embates entre os homens.

É emblemático que a origem dos embargos infringentes em discussão no STF neste momento esteja localizada nas Ordenações Manuelinas, a primeira compilação das leis portuguesas emitidas entre 1512 e o mesmo ano de 1605 em que o mundo se dividiu entre o absolutismo monárquico, avô dos totalitarismos, e a senda da primazia dos fatos que desaguaria na democracia.

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Nós, entretanto, aprendemos a pensar com os jesuítas. Seu sistema de educação, que durante séculos desfrutou de um monopólio nas monarquias absolutistas, não partia de perguntas à realidade nem visava a aquisição de saber. Era um sistema defensivo que foi criado, senão para negar, o que àquela altura já não era possível, para contornar indefinidamente o confronto direto com os fatos de modo a sustentar a qualquer custo uma “verdade revelada” que era o fundamento ultimo de todo um sistema de poder e de uma forma de organização da sociedade que estavam ameaçados pela nova ordem que se insinuava.

Não fomos, portanto, treinados para procurar a verdade, mas sim para “ganhar discussões”; para construir ou destruir argumentos, não importa em torno de que. E o truque que os jesuítas nos ensinaram para consegui-lo foi, primeiro, despir toda e qualquer ideia a ser discutida da sua relação com o contexto real que a produziu para examiná-la como se ela existisse em si mesmo, desligada dos fatos ou das pessoas às quais se refere.

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Sem sua circunstância, a idéia transforma-se num corpo inerte, ao qual não se aplicam juízos de valor que são sempre necessariamente referidos à baliza do padrão ético e moral acatado pela sociedade num determinado momento histórico. Assim esterilizado, o raciocínio é, então, fatiado nos segmentos que o compõem, sendo a coerência interna de cada um deles examinada isoladamente nos seus aspectos formais, segundo as regras da lógica abstrata, as únicas que podem ser aplicadas a esse corpo dissecado.

Se qualquer desses segmentos apresentar a menor imperfeição lógica ou puder ser colocado em contradição com qualquer dos outros, essa “imperfeição” contamina o todo e o debatedor está autorizado a denunciar como falso o conjunto inteiro, mesmo que, visto vivo e dentro do seu contexto, ele seja indiscutivelmente verdadeiro.

É um truque infernal porque põe a verdade a serviço da mentira, o que torna mais difícil denunciá-la.

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É esse o confronto que o Supremo Tribunal Federal reedita no julgamento do “Mensalão”. E, curiosamente, o ministro Celso de Mello, a quem se atribui a propensão de voltar a privilegiar a forma em detrimento do significado na decisão final, foi o primeiro que fez o contrário quando, na primeira fase do julgamento, deu ao “Mensalão” a sua real dimensão de, “atentado aos fundamentos da República” e “tentativa de golpe contra a democracia” que ele indubitavelmente teve, e pautou o rumo que levou às penas que agora podem ser revistas.

Hermenêutica”, que mestre Houaiss define como a técnica que tem por objeto a interpretação de textos religiosos ou filosóficos, especialmente das Sagradas Escrituras”, é a ferramenta que pode operar essa reversão.

O texto do Regulamento Interno do STF onde restaram esquecidos  os embargos infringentes, um dos expedientes de que se armou El Rei para passar indefinidamente ao largo da realidade quando isso lhe conviesse, faz as vezes da “sagrada escritura” em contradição com a qual estão a Constituição de 88 e a lei 8.038 de 1990, que baniram esse instrumento do nosso ordenamento jurídico.

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O infindável caudal “hermenêutico” que a metade dos juízes que o querem exumado e consagrado tece em torno deles é a tentativa de dissecação para tornar irreconhecível o corpo das verdades estabelecidas a partir dos fatos na primeira fase do julgamento a que a outra metade dos juízes quer referir o resultado final.

A decisão de amanhã, que fará jurisprudência, balizará a vida das próximas gerações de brasileiros. Podemos ver revigorada a esperança de ingressar na modernidade e sonhar com a democracia e a consagração do mérito, ou continuar condenados a percorrer o círculo do absurdo no qual os dados da realidade, o senso comum e a razão não são admitidos como instrumentos bastantes para dirimir controvérsias, o que torna dispensável a educação e consagra o amiguismo e a esperteza, que conduzem necessariamente ao conchavo e à corrupção, como as únicas condições necessárias para o sucesso.

celso6

Artigo publicado em O Estado de S. Paulo de 17 de setembro de 2013

Filed under: Artigos de FLM, Ética, Corrupção, Direitos Humanos, Historia do Brasil

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