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Channel: Direitos Humanos – VESPEIRO
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Ingredientes para o fim do mundo

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O diabo neste mundo sincronizado pelas comunicações instantâneas são os desajustes do tempo histórico e cultural em que vivem os diversos pedaços de humanidade espalhados por aí.

As ferramentas desenvolvidas pelas culturas mais avançadas capazes de multiplicar ao infinito a força dos bons e dos maus impulsos da espécie são imediatamente transplantáveis para todos os grupos humanos; as culturas que as produziram não.

O Oriente Médio é o exemplo extremo. As forcas no poder em cada trecho do mapa daquela região não têm, por trás de si, nenhum tipo de contrato social. Não ha consensos sustentando aqueles governos nem nenhuma forma de disciplina que não tenha sido imposta e venha sendo mantida pela força.

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A maior parte dos elos de solidariedade estabelece-se pela relação de clã, estendendo-se, às vezes, para o horizonte tribal. A Síria é dos Assad, dos alauítas, a Arábia Saudita é dos Faissal, da casa de Saud inimiga dos Rachid, e assim vai…

Mesmo as uniões tribais, ainda que tenham o seu peso, são difíceis de se estabilizar num contexto de fronteiras artificiais que truncou a sua história e interrompeu os processos de decantação natural que poderiam, com o tempo, conduzir a arranjos mais sólidos.

O que atravessa a relação de clã e cria uniões mais amplas é a corrente religiosa – xiita, sunita e outras variações mais particulares – na qual cada um se encaixa. Mas estas são também pré-políticas porque, estando apoiadas em dogmas, são naturalmente avessas à tolerância e às composições contratuais.

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Não obstante, esses ditadores, todos eles muito ricos, têm acesso, graças aos interesses do grande jogo geo-estratégico internacional, a armas de destruição em massa que são fruto de tecnologias desenvolvidas por sociedades que só chegaram a dominá-las porque foram capazes de se organizar em Estados nacionais, primeiro, e em Estados nacionais democráticos, depois, razoavelmente aparelhados, portanto, para controlar o uso desses artefatos.

Fora dessas excepcionais democracias, raramente houve o nível médio de educação e recursos para a pesquisa científica continuada necessários para levar a esse tipo de desenvolvimento.

Como em todo processo revolucionário, o tempo histórico dessas sociedades fica congelado por ditaduras no ponto em que foi interrompido. Todos os estados laicos do Oriente Médio são frutos de ditaduras que se instalaram a pretexto de arrancar seus povos do atraso dos califados e/ou das teocracias. Mas acontece que a “vacinação” contra as doenças das sociedades é individual e intransferível. Truncada a história de um povo no estágio do califado ou da teocracia, ou do califado teocrático, esse tipo de arranjo não será banido da memória coletiva. Ao contrário, ficará lá, congelado e livre do teste da realidade. No primeiro percalço do regime que o substituiu, voltarão a se instalar no poder.

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As revoluções e as ditaduras, portanto, suspendem a contagem de tempo mas não dispensam a retomada do percurso do ponto de partida. Na verdade acabam por atrasar o processo. Cada uma dessas fórmulas terá de ser vivida por tempo suficiente para que as pessoas se decepcionem com elas, migrem para a oposição e, finalmente, morram à míngua de quem ainda acredite nelas e possam ser definitivamente enterradas.

Seguir-se-á, de geração em geração, a alternância entre fórmulas diferentes e, depois, uma alternância cada vez mais rápida, sempre pelo hard way do ensaio e erro, até que a sociedade se eduque o bastante para não perder contato com a sua própria história a cada nova geração.

A partir desse ponto, poderá amadurecer o bastante para se dar conta de que a resposta para essa questão está justamente na ausência de resposta e, portanto, na alternância em si mesmo dos ocupantes do poder pelas boas razões que Eça de Queiróz sintetizou tão bem no seu epíteto escatológico: “Políticos e fraldas têm de ser trocados constantemente, e pela mesma razão”.

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Assumir essa instabilidade planejada como a única resposta possível para aquela estabilidade sonhada na infância das sociedades, é acordar, de repente, numa democracia.

O Brasil e o PT, nesta relação irracional de amor e ódio que ainda mantêm, são uma manifestação desse mesmo processo, mais atrasada do que poderia estar em relação aos dos nossos avós da Europa Continental em função das interrupções revolucionárias sofridas, que explicam porque ainda existe quem pense que “esquerda” ou “direita” sejam expressões que designam mais do que a mesma boa e velha humanidade de sempre que, em contato com o poder, sujar-se-á inevitavelmente com o mesmo tipo de sujeira que borra as fraldas dos bebês.

Já podíamos ter pastado o que ainda estamos pastando ha tempos, e estar vacinados contra as utopias e as panaceias, como haveremos de estar com mais uma década de regime de capim, pouco mais ou menos, tratando de ganhar a vida em paz com comida mais digna de ser comida.

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O Oriente Médio é um caso extremo em função do tamanho dos ódios à solta.

A coisa mais fácil do mundo é abrir as portas do Inferno. E a mais difícil, tanger os demônios todos lá pra baixo de novo e voltar a fechá-las. A violência em sociedades de clãs é sempre mais pesada porque o sangue derramado é sempre o sangue de um irmão, e frequentemente derramado por outro irmão. Com isso a escalada da barbárie vai a alturas impensáveis para sociedades presas a outras formas menos figadais de relacionamento.

Some-se a isso a presença de armas de destruição em massa e a conclusão é que estão postos, ali, todos os ingredientes para o fim do mundo como ilustra bem o impasse da Síria que faz qualquer um tremer diante de alternativas que conduzem, todas, ao holocausto numa guerra que, embora exposta aos olhos do mundo é, ao mesmo tempo invisível, como escreveu Giles Lapouge outro dia, pois não se consegue, sequer, determinar a identidade daqueles que se entrematam nela.

Esse mesmo gênero de descompasso de timming, para além dos episódios fortuitos desencadeados pelas distorções nos mercados financeiros mais sofisticados que precipitaram a última crise econômica mas que, em ultima instância, também são consequências indiretas dele, estão provocando danos irreversíveis fora do longuíssimo prazo, na ordem econômica mundial.

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A repentina “conexão” a este milênio e a este século das multidões de miseráveis sem nenhum direito fabricados pelo socialismo real em todo o mundo está provocando uma diluição geral de salários e direitos de trabalhadores que avança em par com um processo vertiginoso de concentração do poder econômico determinado pela necessidade de obter escala para concorrer com os monopólios dos capitalismos de Estado.

E, por enquanto, parece muito mais provável que a minoria que foi arrancada por esse tsunami da bonomia da ponta do capitalismo democrático modulado pelo princípio antitruste mergulhe de volta no capitalismo selvagem, agora piorado pela aliança aberta que pôs fora de controle os grandes predadores necessários à ecologia do meio ambiente econômico e os restos dos estados nacionais, do que que o lumpen dos antigos paraísos socialistas descubra a tempo o caminho que levou os Estados Unidos e poucos povos mais a viver esse período excepcional em que, mediante uma sofisticada construção, o Estado enfrentou e moderou o poder do Capital durante um pedaço do século 20.

Essa regressão forçada encerra, potencialmente, forças de destruição tão ou mais poderosas e incontroláveis quanto as que já estão à solta no Oriente Médio.

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Filed under: Artigos de FLM, Cultura, Direitos Humanos, Globalização, Internacional, Religião, Tecnologia

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